Ficção - Incrível experiência da integração de um Lobisomem em nosso meio Em noite chuvosa, barulhenta, tempestuosa eu ouvi por entre os es...
Ficção - Incrível experiência da integração de um Lobisomem em nosso meio
Em noite chuvosa, barulhenta, tempestuosa eu ouvi por entre os
estrondos dos trovões e o ruflar pesado da chuva forte, uns barulhos
diferentes de tropeços e lamúria, como que vindo do meu quintal escuro
e ensopado. Então, destramelei a porta da cozinha que se abriu por si
mesma com a força do vento, o qual entrou forte, frio e molhado e, num
instante, encharcou minha roupa e meus sapatos.
Meio encolhido, meio com medo e tentando enxergar aproveitando os
clarões momentâneos dos relâmpagos, avancei cuidadoso pelo quintal.
Avançara já uns cem metros quando deparei com um vulto encolhido
que grunhia e tremia entanguido de frio.
Era um pobre Lobisomem, marginalizado, enregelado e talvez doente!
Ali estava ele, lendário, concreto, real, carente e muito sofrido.
Olhei-o, a princípio, transido de horror, mas, logo a seguir, ao
perceber sua humílima atitude e a expressão humana de seu rosto;
enchi-me de pena e num rompante de solidariedade arrisquei-me a
convidá-lo com um gesto para que me seguisse.
Já em casa, atirei-lhe uma grossa toalha, cobertores, e ele se
encolheu perto do fogo e logo adormeceu. Meio confuso, fechei por
cuidado a porta que separava a cozinha do resto da casa e fui para o
meu quarto. Já deitado, fiquei por longas horas pensando naquele pobre
ser que na minha infância povoara, como outros, minha imaginação. E
que era tão temível, tão poderoso, assustador e, agora, concreto como
eu ou a minha cama, ali estava acocorado no rabo do fogão encolhido
trêmulo e cansado.
Que andariam fazendo os lobisomens, os currupiras e tantos outros
seres que outrora, antes da bomba atômica, do Sky Lab, da poluição, da
ameaça de falta de alimentos e de tantos terrores reais e modernos
assustavam os homens e faziam as crianças rezarem e ficarem quietas
para dormir?
Entre meditações, cochilos, sobressaltos e, por fim, sono profundo
atravessei a noite. Na manhã seguinte despertei cheio de planos
brilhantes para ajudar o lobisomem.
Paciente e submisso ele suportou cada procedimento, cada engano,
cada sugestão minha e foi sendo remodelado gradativamente para
adaptar-se ao mundo dos homens.
Tricotomia total, geral e irrestrita, extrações dentárias,
plástica das orelhas etc.,etc.
Finalmente conseguiu-se desorrorizar a aparência do Lobisomem e
dentro de um grosso macacão de brim, sapatos e luvas o liberei para
que saísse pelas ruas e travasse contato com o povo.
Conseguimos ajeitar o mínimo indispensável de documentos, demos a
ele um nome bem simples, bem simpático e o deixamos ir. E lá se foi o
João!
No fim do primeiro dia ele voltou e contou que não conseguira ser
aceito nem em um grupo de vadios que se reunia em uma esquina. No
segundo dia idem... No terceiro, no quarto, no quinto, tudo a mesma
coisa! Depois de quase um mês parece que as pessoas foram se
acostumando com o seu jeitão e passaram a mexer com ele chamando-o de
Corcunda de Notre Dame e, quando descobriram seu nome, imediatamente o
apelidaram de João Garante; mas ele não se importou e até deu mostras
de estar gostando. Muito forte, paciente, necessitado de amizade tudo
isso foi fazendo com que os grupos de braçais o fossem acolhendo
paulatinamente até que, finalmente, ele chegou em casa contando que
havia conseguido emprego. Eu e mais um grupo de amigos empenhados na
experiência, consideramos aquilo um enorme êxito e demos um hurra de
puro entusiasmo.
E o Lobisomem com o nome de homem foi dormir muito contente.
Aceito no nosso mundo ele esteve sumido de nosso bairro um bocado
de tempo. Tempo em que com força descomunal, dedicação, entusiasmo e
esforço incansável enfrentou todo tipo de serviço disponível.
Em breve notou que do seu trabalho não advinha mais que mirrado
sustento com sacrifício de quase totalidade de suas horas de vigília.
Entretanto pensou, com certeza estamos construindo uma sociedade
tal que, após este período de sacrifícios, passaremos a gozar de tudo
o que edificamos.
Com o tempo descobriu que o que lhe tocava era apenas aquele sustento.
Meditou muito... E ficou triste!
Meditou mais e teve raiva!
E tendo raiva gritou tentando despertar os homens com suas verdades!
Uns estranharam... Outros ouviram... Alguns apoiaram... Mas,
ninguém tinha verdades para gritar e num marasmo homogêneo voltaram ao
trabalho.
Como seu grito não teve repercussão, ninguém o incomodou e assim
pôde continuar andando despercebido pelo nosso mundo. E observando... E meditando...
Viu guerras onde os homens despejavam o fogo que não se apaga
sobre seus semelhantes e ao mesmo tempo pregavam a mansidão, a
bondade, a piedade.
Viu navios de refugiados perambulando pelos mares e a piedade
cristã , budista, maometana etc, etc, não saber como acolhê-los.
Sentiu os nosso pavores, conviveu com nossas tristezas, partilhou
de nossas alegrias, comeu em nossas mesas mais pobres e aspirou a
fragrância das mais fartas, apiedou-se de nossa piedade, procurou
vislumbrar os nossos horizontes e os notou obscuros.
E concluiu:
Talvez reste-lhe avançar pelo universo e em mundos novos tentar modelos novos de vida.
Sem poder contribuir para modificar nosso mundo, uma última vez nos procurou e mais sofrido do que na noite da chuva, fez um relato
sucinto e nos comunicou que iria abstratificar-se e, em outra
dimensão, continuaria sua vida, longe dos horrores desse mundo.
E, mudos de espanto, o vimos passar desta para outra dimensão,
desaparecendo ali na nossa frente.
Anápolis, 25.11.79
Em noite chuvosa, barulhenta, tempestuosa eu ouvi por entre os
estrondos dos trovões e o ruflar pesado da chuva forte, uns barulhos
diferentes de tropeços e lamúria, como que vindo do meu quintal escuro
e ensopado. Então, destramelei a porta da cozinha que se abriu por si
mesma com a força do vento, o qual entrou forte, frio e molhado e, num
instante, encharcou minha roupa e meus sapatos.
Meio encolhido, meio com medo e tentando enxergar aproveitando os
clarões momentâneos dos relâmpagos, avancei cuidadoso pelo quintal.
Avançara já uns cem metros quando deparei com um vulto encolhido
que grunhia e tremia entanguido de frio.
Era um pobre Lobisomem, marginalizado, enregelado e talvez doente!
Ali estava ele, lendário, concreto, real, carente e muito sofrido.
Olhei-o, a princípio, transido de horror, mas, logo a seguir, ao
perceber sua humílima atitude e a expressão humana de seu rosto;
enchi-me de pena e num rompante de solidariedade arrisquei-me a
convidá-lo com um gesto para que me seguisse.
Já em casa, atirei-lhe uma grossa toalha, cobertores, e ele se
encolheu perto do fogo e logo adormeceu. Meio confuso, fechei por
cuidado a porta que separava a cozinha do resto da casa e fui para o
meu quarto. Já deitado, fiquei por longas horas pensando naquele pobre
ser que na minha infância povoara, como outros, minha imaginação. E
que era tão temível, tão poderoso, assustador e, agora, concreto como
eu ou a minha cama, ali estava acocorado no rabo do fogão encolhido
trêmulo e cansado.
Que andariam fazendo os lobisomens, os currupiras e tantos outros
seres que outrora, antes da bomba atômica, do Sky Lab, da poluição, da
ameaça de falta de alimentos e de tantos terrores reais e modernos
assustavam os homens e faziam as crianças rezarem e ficarem quietas
para dormir?
Entre meditações, cochilos, sobressaltos e, por fim, sono profundo
atravessei a noite. Na manhã seguinte despertei cheio de planos
brilhantes para ajudar o lobisomem.
Paciente e submisso ele suportou cada procedimento, cada engano,
cada sugestão minha e foi sendo remodelado gradativamente para
adaptar-se ao mundo dos homens.
Tricotomia total, geral e irrestrita, extrações dentárias,
plástica das orelhas etc.,etc.
Finalmente conseguiu-se desorrorizar a aparência do Lobisomem e
dentro de um grosso macacão de brim, sapatos e luvas o liberei para
que saísse pelas ruas e travasse contato com o povo.
Conseguimos ajeitar o mínimo indispensável de documentos, demos a
ele um nome bem simples, bem simpático e o deixamos ir. E lá se foi o
João!
No fim do primeiro dia ele voltou e contou que não conseguira ser
aceito nem em um grupo de vadios que se reunia em uma esquina. No
segundo dia idem... No terceiro, no quarto, no quinto, tudo a mesma
coisa! Depois de quase um mês parece que as pessoas foram se
acostumando com o seu jeitão e passaram a mexer com ele chamando-o de
Corcunda de Notre Dame e, quando descobriram seu nome, imediatamente o
apelidaram de João Garante; mas ele não se importou e até deu mostras
de estar gostando. Muito forte, paciente, necessitado de amizade tudo
isso foi fazendo com que os grupos de braçais o fossem acolhendo
paulatinamente até que, finalmente, ele chegou em casa contando que
havia conseguido emprego. Eu e mais um grupo de amigos empenhados na
experiência, consideramos aquilo um enorme êxito e demos um hurra de
puro entusiasmo.
E o Lobisomem com o nome de homem foi dormir muito contente.
Aceito no nosso mundo ele esteve sumido de nosso bairro um bocado
de tempo. Tempo em que com força descomunal, dedicação, entusiasmo e
esforço incansável enfrentou todo tipo de serviço disponível.
Em breve notou que do seu trabalho não advinha mais que mirrado
sustento com sacrifício de quase totalidade de suas horas de vigília.
Entretanto pensou, com certeza estamos construindo uma sociedade
tal que, após este período de sacrifícios, passaremos a gozar de tudo
o que edificamos.
Com o tempo descobriu que o que lhe tocava era apenas aquele sustento.
Meditou muito... E ficou triste!
Meditou mais e teve raiva!
E tendo raiva gritou tentando despertar os homens com suas verdades!
Uns estranharam... Outros ouviram... Alguns apoiaram... Mas,
ninguém tinha verdades para gritar e num marasmo homogêneo voltaram ao
trabalho.
Como seu grito não teve repercussão, ninguém o incomodou e assim
pôde continuar andando despercebido pelo nosso mundo. E observando... E meditando...
Viu guerras onde os homens despejavam o fogo que não se apaga
sobre seus semelhantes e ao mesmo tempo pregavam a mansidão, a
bondade, a piedade.
Viu navios de refugiados perambulando pelos mares e a piedade
cristã , budista, maometana etc, etc, não saber como acolhê-los.
Sentiu os nosso pavores, conviveu com nossas tristezas, partilhou
de nossas alegrias, comeu em nossas mesas mais pobres e aspirou a
fragrância das mais fartas, apiedou-se de nossa piedade, procurou
vislumbrar os nossos horizontes e os notou obscuros.
E concluiu:
O HOMEM É MUITO INFELIZ!
Talvez reste-lhe avançar pelo universo e em mundos novos tentar modelos novos de vida.
Sem poder contribuir para modificar nosso mundo, uma última vez nos procurou e mais sofrido do que na noite da chuva, fez um relato
sucinto e nos comunicou que iria abstratificar-se e, em outra
dimensão, continuaria sua vida, longe dos horrores desse mundo.
E, mudos de espanto, o vimos passar desta para outra dimensão,
desaparecendo ali na nossa frente.
Anápolis, 25.11.79